quarta-feira, 29 de abril de 2009

(...) Nesse dia teve uma grande alegria: à hora do jantar o preto da senhora Larsonnière apresentou-se com um papagaio numa gaiola com a vara, corrente e o cadeado. Um bilhete da baronesa anunciava à senhora Aubain que partiam essa noite; e ela pedia-lhe para aceitar aquele pássaro como uma lembrança em testemunho da sua estima.

Há muito que ele preenchia a imaginação de Félicité, pois vinha da América, e esta palavra fazia lembrar-lhe Victor, (...)



iv



Chamava-se Loulou. O seu corpo era verde e a extremidade das asas era cor-de-rosa, a frente da cabeça azul e o pescoço dourado. Mas tinha a fatigante mania de morder a vara, arrancava as próprias penas, espalhava oe seus excrementos, derramava água na banheira; a senhora Aubrain, irritada com ele ofereceu-o para sempre a Félicité.

Ela dedicou-se a ensiná-lo; não tardou que repetisse: bonito rapaz! às suas ordens senhor! Avé, Maria!. Comparavam-no com uma perua ou com um cepo: quantas punhaladas para Félicité. (...)
Loulou recebera do rapaz do talho um piparote, ao atrever-se a enfiar a cabeça do seu cesto; e desde então tentava sempre belisca-lo através da camisa. Fabu ameaçava torcer-lhe o pescoço, embora não fosse cruel, apesar das tatuagens dos braços e das grandes suíças. Pelo contrário! até tinha um afeição pelo papagaio, ao ponte de querer, por jovial humor, ensinar-lhe a praguejar. Félicité, a quem estas maneiras assustavam, colocou-o na cozinha. Retiraram-lhe a corrente, e ele circula pela casa. (...)

Ela tinha-o pousado na erva para o referescar e ausentou-se um minuto; quando voltou, não havia mais papagaio! primeiro, procurou-o nas moitas, à beira da água e nos telhados. De seguida, inspeccionou todos os jardins de Pont-L'Évêque. (...) um caixeiro-viajante afirmou-lhe que o tinha encontrado há pouco em Saint-Melaine. Correu até lá. Ninguém sabia do que falava. Por fim regressou, esgotada, com os velhos sapatos em frangalhos e a morte na alma; e, sentada no meio do banco, perto da Senhora, contava todas as diligências, quando um ligeiro peso lhe caiu sobre o ombro, Loulou!

Teve dificuldades em recompor-se, não se recompôs nunca. Devido a um resfriamento, surgiu-lhe uma angina; pouco tempo depois, uma doença nos ouvidos. Três anoss mais tarde estava surda; e falava alto, mesmona igreja. (...) O pequeno círculo das suas ideias reduziu-se ainda, e o carrilhão dos sinos ou o mugir dos bois deixaram de existir. Todos os seres funcionavam com o silêncio dos fantasmas. Só uma voz lhe chegava: a do papagaio.

Dialogavam os dois, ele, debitando à saciadade as três frases do seu reportório, e ela, respondendo palavras sem sentido, mas onde o seu coração se desafogava. Loulou, no seu isolament, era quase um filho, um namorado. Subia-lhe os dedos, mordiscava-lhe os lábios, cravava-se-lhe no lenço; (...)

Numa manhã do terrível inverno de 1837 em que ela o colocara em frente à lareira por causa do frio, deu com ele morto no meioda gaiola, de bcabeça para baixo e as unhas das barras de ferro. Chorou tanto que a patroa lhe disse: muito bem! mande-o empalhar. (...)

Finalmente chegou e esplêndido de pé num ramo de árvore, que se aparefusava num pedestal de mogno, com uma pata no ar, de cabeça inclinada a morder um noz, que o empalhador, por amor à gradiosidade, havia dourado. Fechou-o no seu quarto. (...)

Félicité quis saber o que tinha. Mas, demasiado surda para ouvir, uma só palavra chegou: pneumonia. (...) de terça a sábado, vésperas do corpo de deus, ttossiu frequentemente. À tardinha o seu rosto estava tenso, os seu lábios colavam-se às gengivas, começaram os vómitos; e no dia seguinte, ao amanhecer, sentindo-se muito mal, mandou chamar um padre. (...)

- Vamos! Diga-lhe adeus!

Embora não fosse um cadáver, os vermes devoravam-no; uma de suas asas estava quebrada, a estopa saía-lhe do ventre. Mas, cega agora, ela o beijou na fronte e o mantinha encostado à face. A Simone pegou-o. de volta para colocá-lo sobre o altar

v


As pastagens exalavam o aroma do verão; moscas zumbiam; o sol fazia brilhar o ribeirão, aquecia as ardósias. A velha Simone, de volta ao quarto, dormia tranquilamente. Toques de sino acordaram-na; saía-se das vésperas. O delírio de Félicité diminuiu. Sonhando com a procissão, ela a via, como se a tivesse acompanhado.

Todas as crianças das escolas, os cantores e os bombeiros andavam nas calçadas, enquanto pelo meio da rua avançavam primeiramente: o suíço carregando a alabarda, o sacristão com uma grande cruz, o instrutor vigiando os garotos, a religiosa inquieta com suas meninas - três das menores, cacheadas como anjos, lançavam no ar pétalas de rosas -, o diácono, com os braços
abertos, moderando a música e dois incensadores voltando-se a cada passo em direção ao Santo Sacramento, que o pároco, na sua bela casula, carregava, sob um pálio de veludo vermelho vivo, segurado por quatro membros da igreja. Uma multidão seguia atrás, entre as toalhas brancas cobrindo o murro das casas; e chegou ao final da ladeira.

Um suor frio molhava as têmporas de Félicité. A Simone a enxugava com um pano, dizendo que precisaria um dia passar por lá. O murmúrio da multidão aumentou. Tornou-se muito forte por um momento, distanciou-se.

Uma rajada de fuzis abalou os ladrilhos. Eram os postilhões saudando o ostensório. Félicité virou suas pupilas, e disse, o mais alto que pode:
- Ele está bem? - angustiada pelo papagai sua agonia começou. E estertores, cada vez mais frequentes, erguiam-lhe as costas. Bolhas de espuma escorriam-lhe pelo canto da boca, e todo seu corpo tremia.

Logo se distinguiu o ronco dos oficlides, as vozes cristalinas das crianças, a voz grave dos homens. Tudo silenciava de vez em quando, e a batida dos passos, amortecida pelas flores, fazia o barulho de um rebanho sobre a relva.

O pároco surgiu no pátio. A Simone subiu em uma cadeira para alcançar o olho-de-boi, e dessa maneira dominava o andor. Guirlandas verdes pendiam sobre o altar, ornado por um falbalá em ponto inglês. Havia no meio um pequeno quadro contendo relíquias, duas laranjeiras nos cantos e, em todo o comprimento, candelabros de prata e vasos de porcelana, de onde saíam girassóis, lírios, peônias, dedaleiras, cachos de hortênsias. Esse amontoado de cores brilhantes descia obliquamente, do primeiro andar até o tapete, prolongando-se sobre os paralelepípedos; e objetos estranhos atraíam os olhares. Um açucareiro de prata dourada tinha uma coroa de violetas, pingentes em pedras de Alençon brilhavam sobre musgo, dois biombos chineses expunham suas paisagens. Loulou, escondido sob as rosas, só deixava ver sua testa azul, parecida com uma placa de lápis-lazúli.

Os membros da igreja, os cantores, as crianças enfileiraram-se nos três lados do pátio. O padre subiu lentamente os degraus e colocou sobre a renda seu grande sol de ouro que cintilava. Todos se ajoelharam. Fez-se um grande silêncio. E os incensórios balançados vigorosamente, deslizavam em suas correntinhas.

Um vapor azul subiu no quarto de Félicité. Ela avançou as narinas, inalando-o com uma sensualidade mística; depois fechou suas pálpebras. Seus lábios sorriam. Os movimentos de seu coração diminuíram um a um, cada vez mais vagos, mais suaves, como uma fonte se esgota, como um eco desaparece; e quando exalou seu último suspiro, ela acreditou ver, nos céus entreabertos, um papagaio gigantesco, planando acima de sua cabeça.

Gustave Flaubert, um coração simples

1 comentário:

Marta disse...

Tão lindo! íssimo.
Tanto tudo, Eduardo!

beijinho e obrigada pela tua generosidade!